1.1-
Dignidade Humana.
A
dignidade é expressão que melhor representa os direitos humanos, pois constitui
em eixo nuclear destes tendo em vista que é o “valor básico fundante”, conforme
Pascual[1],
e em razão disso ela é indivisível, conforme o mesmo autor. Mas a construção
histórica do conceito de dignidade remonta a distinção feita pelos romanos
entre a função pública que uma pessoa exerce e o alto prestígio oficial (dignitas) que encarna-se em seu titular.
Acompanhando a explicação que Comparato faz desse termo, assinala-se a
importante obra de Kantorowicz (Os Dois Corpos do Rei), pois enquanto seu corpo
material está submetido a corrupção e ao declínio, seu corpo politico sobrevive
a morte. Dessa forma a teoria medieval dos dois corpos do Rei:
[...]
permite compreender em sua plenitude o constraste entre a dignidade
transcendente da pessoa humana, enquanto supremo modelo da vida ética, e a
individualidade pessoa de cada ser humano, com todas as suas limitações e
deficiências. O paradigma da pessoa humana reúne em si a totalidade dos
valores; ela é o supremo critério axiológico a orientar a vida de cada um de
nós.[2]
Como nos lembra Pascual, a dignidade é uma ideia
universal[3],
sendo que por sua vez o fundamento dessa ideia se encontra no próprio consenso,
tal como defendido por Bobbio, em sua obra "A Era dos Direitos". Como
o próprio Pascual assegura, tanto os pactos internacionais como os fundamentos
dos pactos, estão baseados no consenso, e dessa forma “la propia dignidade
humana como fundamento es objeto de pacto o consenso”[4].
Buscando definir o que é “dignidade da pessoa” Sarlet destaca sua
característica de ser um conceito em aberto, a ser determinado, mas ressalvando
que essa condição não impede a busca de uma fundamentação, até porque a
“própria comunidade humana vislumbra em determinadas condutas (inclusive
praticadas em relação a outros seres vivos) um conteúdo de indignidade”[5].
Para esse autor, essa situação demonstra que é mais fácil dizer o que a
dignidade não é do que dizer o que ela é. Mas após longa dissertação sobre o
tema, Sarlet por fim oferece uma concepção aberta e multidimensional da
dignidade da pessoa humana que reproduzimos abaixo:
Assim
sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o
faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para um vida saudável, além de propiciar e promover sua participação
ativa e co-responsável nos destinos de sua existência e da vida da em comunhão
com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que
integram a rede da vida. [6]
Por fim, é oportuna a preciosa lição kantiana do
imperativo categórico, segundo o qual, para eu saber se uma conduta é moral ou
não, devo submetê-la ao teste do imperativo. Toda vez que eu estiver diante de
uma situação que exige de mim uma ação moral Kant recomenda: “Age apenas
segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal”, ou ainda, “age como se a máxima da tua acção se devessse tornar,
pela tua vontade, em lei universal da
natureza”[7].
Desenvolvendo sua doutrina do imperativo categórico, Kant estabelece como
consequência lógica desse imperativo, considerar o homem como
[...]
ser racional [que] existe como fim em si
mesmo, não só como meio para o uso
arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações,
tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres
racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim.[8]
Como frisa Sarlet, Kant faz uma distinção
entre dignidade, como um valor incomensurável economicamente, e as coisas, que
estão submetidas ao regime da quantificação econômica. Para Kant, ainda nas
linhas de Sarlet, a dignidade corresponderia a um valor sem preço, no sentido
de um valor intrínseco, infungível, próprio de cada ser humano, reconhecendo os
seres humanos como possuindo um valor com certo caráter normativo, mas não
utilitário[9].
É exatamente em cima desse texto de Kant
que Luigi Ferrajoli desdobra a diferenciação entre direitos fundamentais e
direitos patrimoniais, pois os primeiros estavam subscritos a dignidade das
pessoas, cujo conteúdo valorativo se afasta ou se distingue dos direitos
patrimoniais singulares, tomando os primeiros como direitos fundamentais
universais. Nas palavras do mestre italiano, tal distinção pode ser destacada como
níveis diferenciados, onde um opera “como valor relativo” e outro como “valor
intrínseco”, um ambientado na esfera do disponível ou de mercado, e outro na
esfera do indisponível ou da dignidade propriamente dita[10].
[1]
Pascual, 2000, p. 29
[2]
Comparato, 2006,p.481.
[3]
Ibidem, p. 31
[4]
Pascual, 2000, p.68.
[5]
Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na
Constituição Federal de 1988. 8ª edição ver. Atual e ampl. Porto Alegre:
Livraria dos Advogados Editora, 2002, p. 40.
[6]
Sarlet, 2010, p. 70.
[7]
Kant, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela.
Porto: Porto Editora, 1995 ,p. 39
[8]
Ibidem, p. 65.
[9]
Sarlet, 2010, p. 38.
[10]
Ferrajoli, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Tradução
de Alexandre Salim et al. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011,p.104.