quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Irrecorribilidade das "Ações da Lei" no Direito Romano Republicano

Prezados, conforme prometido à alguns alunos, estou agora fornecendo aos senhores algumas considerações sobre a possibilidade ou não de recorrer às decisões do "juiz" nas "ações da lei". Na aula passada havíamos comentado de forma marginal sobre o procedimento das ações da lei, e quando citamos a questão posta por Gaio em sua Instituições de Direito Privado Romano, fizemos menção da rígida formalidade desse direito de ações, especialmente quanto à actio de arboribus succisis (ação relativa a árvores cortadas). Vamos voltar a Gaio quando comenta essa questão:

"As acções que estavam em uso nos tempos antigos eram chamadas "acções da lei" porque resultavam das leis <existentes>, uma vez que os edictos do Pretor, pelos quais vieram a ser introduzidas muitas modalidades de acções, não estavam ainda em uso, e também porque, por isso mesmo, se baseavam literalmente nas palavras da lei, as quais eram tão imutavelmente observadas como as próprias leis, a ponto de um indivíduo que pôs uma acção para reclamar contra um corte de videiras e, no decorrer da acção, empregou o termo "videiras", foi sentenciado a perder a acção, uma vez que a lei das XII Tábuas, no artigo que ele podia alegar para reclamar o corte de videiras, apenas emprega a expressão genérica de 'corte de árvores' [...]" (GAIO, IV, 11)


A questão foi se a parte que perdeu a ação poderia ter recorrido. Apesar de ter respondido que não, deixei uma lacuna ao não citar a fonte que me autorizava a fazer essa afirmação. Como indiquei em outras aulas como fonte autorizada dessa matéria cito aos senhores trecho de José Carlos Moreira Alves, de sua obra Direito Romano:

"A sentença, no processo das legis actiones, é irrecorrível, mas se o réu não quiser executá-la, no caso de ter sido condenado, o iudex não pode obrigá-lo, com emprego de força, a cumpri-la, pois é ele um simples particular, não dispondo, portanto, do imperium. Por isso, nesse caso, o autor vitorioso está obrigado a valer-se de outra legis actio (a actio per manus iniectionem) para obter a execução da sentença que lhe foi favorável" (ALVES, 1999: 196)

Concluindo, portanto, pelo que afirmamos em sala de aula, no período das Ações da Lei, as sentenças são  irrecorríveis. Quanto a outra questão aventada, sobre a possibilidade de intentar outra ação sob o mesmo objeto penso que podemos discutir melhor em outro momento, mas se nos guiarmos pelo que foi discutido até agora, podemos afirmar que não seria nada razoável sentenciar com a impossibilidade de recorrer permitindo que depois o réu ajuizasse outra ação com o mesmo objeto. Creio que seria uma forma de burlar os objetivos do próprio direito que proíbe o recurso dessas sentenças. 

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O positivismo e a história do direito: O Digesto de Justiniano

Prezados alunos e colegas, no bojo de nossa aula expositiva de ontem, na sequência da discussão do Digesto de Justiniano, levantamos as questões relacionadas a visão positivista da História e especialmente da História do Direito.  Chamei a atenção dos senhores para a construção teórica da ciência do direito fundada em dois grandes pilares, distintos e conexos : a linearidade e a evolução histórica. Vimos que esses dois elementos permeiam a visão do homem moderno sobre o processo histórico que vê no "final" da história, ou seja, em nossa civilização (presentificação da história), o clímax de um processo histórico que tem etapas consideradas evolucionistas, ou seja, a uma certa ideia de processo inexorável do progresso. Em outras palavras e de forma bem clara: nossa geração, e nossa civilização considera-se melhor que outras, afinal, somos modernos. Vimos em nosso debate como as opiniões da turma ficaram polarizadas sobre a ideia se estamos melhores ou piores que os antigos, e levantamos o problema do anacronismo, que consiste basicamente na inadequação de nossos conceitos, carregados de valores "modernos" para avaliar o passado humano. Dizia-lhes em sala que o "passado é algo muito sério", tanto quanto o presente, e lembrei-lhes das palavras de Comte que "somos mais governados pelos mortos do que pelos vivos", ou seja, o passado nos legou, sob muitas formas, representações da realidade que nos ajudam a tomar decisões, daí a importância da obra de Mary Douglas, "Como as instituições pensam", mencionada na semana passada.  Para então finalizar esse aspecto sob teoria da História citei-lhes e concitei-lhes   a adquirir a obra de Ricardo Marcelo Fonseca, obra essa que considero uma das melhores e mais competentes de introdução à história do direito, e que será objeto de futura reflexão, e de forma mais bem organizada. Abaixo reproduzo um pequeno trecho que foi lido em sala de aula e que revela o brilhantismo e síntese de um autor nacional que não deixa a desejar à autores estrangeiros: 

"Em outras palavras, é elaborado um conhecimento histórico intrinsecamente ligado a uma lógica que é própria do historiador que redige tal história e que, por sua vez, não pode ser dissociada de todo um código de valores, de preocupações teóricas etc., em verdade pertencentes à época do historiador (e não à época estudada). A linearidade construída desta forma, assim, torna-se uma deformação grave do passado pelo filtro desta lógica da exclusão (do presente). Como lembra Hespanha, a partir desse procedimento, "o presente é imposto ao passado; mas, para além disso, o passado é tornado prisioneiro de categorias, problemáticas e angústias do presente, perdendo sua própria espessura e especificidade, a sua maneira de imaginar a sociedade, de arrumar os temas, de pôr as questões e de as resolver". (FONSECA, Ricardo Marcelo, Introdução teórica à história do direito, p. 61).

Como bem ressalta o autor citado por Fonseca, uma das consequências de olhar o passado com os olhos do presente (com os valores de nossa sociedade atual) consiste em perder as especificidades temporais, históricas. Penso que os autores estão querendo dizer: tudo se torna presente quando estudamos o passado buscando nele unicamente respostas para os dilemas do presente. Isso leva uma diluição das fronteiras entre um tempo e outro, perde-se a nossa de temporalidade, tão importante para nos situarmos e também fazermos uma avaliação crítica de nossa sociedade e civilização. Toda crítica, falávamos em sala de aula ontem, necessita um elemento de comparação, que constituiria nosso ponto fixo arquemediano, e vimos que as culturas são relativamente inexoráveis, incomparáveis, mas não absolutamente, caso contrário, não poderíamos nem sequer opinar se é justa ou não a escravidão por dívida legitimada na Lei da Doze Tábuas, que diz expressamente que " se os credores preferirem, poderão vender o devedor a um estrangeiro, além do Tibre" (Tábua 3, 9). Tocamos rapidamente na questão do etnocentrismo, do relativismo cultural que permeia toda a nossa discussão sobre o direito antigo e moderno. 


Deixei uma questão em aberto aos senhores ontem, e espero que no nosso próximo encontro venhamos a tratar: se há na historiografia moderna (história tradicional ou positivista) a tendência de olhar o passado com os olhos do presente, haveria a possibilidade de olhá-lo de outra forma, ou estamos presos a condição de homens sujeitos de nosso próprio tempo na explicação do passado? 


Obs: vou postar, a pedido de alunos,  a figura que utilizamos para exemplificar como pessoas pertencentes a outras culturas e civilizações antigas construíram uma visão completamente inversa da nossa quando comparavam-se à outras culturas, a estátua do rei babilônico Nabucodonozor, onde a cabeça simboliza o ápice civilizacional representada pela sociedade mesopotâmica e babilônica. A próxima postagem irei colocar em mais detalhes os três primeiros capítulos do Livro I do Digesto de Justiniano abordados nessas últimas semanas. 


quinta-feira, 21 de junho de 2012

Fontes do direito romano


Prezados alunos e colegas, na última aula discutimos, ou melhor, voltamos a discutir as fontes do direito romano. Destacamos algumas, inclusive salientando a controvérsia em cima dos costumes, como fonte direta ou indireta do direito. Agora, quero trazer aos senhores uma extensão de nosso debate para alguns pontos relevantes para os próximos seminários, bem como para a sequência da minha aula expositiva sobre contratos, no direito romano. 
Vamos antes reforçar as quais as fontes do direito romano:

Para Gaio, em sua obra "Instituições do Direito Privado Romano":

"As fontes do direito do povo romano são: as leis, os plebiscitos, os senátus-consultos, as constituições imperiais, os edictos dos magistrados que possuem o direito de emitir edictos, as respostas dos prudentes". (Inst. I, 1, 2). 

Em sala de aula discutíamos o papel dos costumes (chamado pelos romanos de jus non scriptum), e seu status comparado a lei, e concluindo afirmativamente sobre se constituir em fonte do direito. Vimos também a definição de costume, qual seja:

"Não-escrito é o direito que o uso aprovou, porque os costumes repetidos, diuturnamente, e aprovados pelo consenso dos que os usam equivalem à lei" (Institutas, L I,TII, §9). 

A questão polêmica foi: se os costumes equivalem à lei, um costume pode revogar ou derrogar uma lei? 

A resposta minha oferecida em sala de aula foi com base no jurisconsulto Juliano:

"O costume (consuetudo) inveterado não é guardado despropositadamente, e este é o direito que se diz constituído pelos mores. Pois, uma vez que as próprias leis não nos obrigam senão pelo fato de que foram admitidas pelo juízo do povo, com razão também obrigarão a todos estas coisas que o povo aprovou sem sequer um escrito. Pois o que importa ao povo declarar a sua vontade por sufrágio ou por meio dos próprios fatos e feitos? Por isso também foi corretíssimo admitir que as leis sejam ab-rogadas, não só pelo sufrágio do legislador, mas também pelo tácito consenso de todos por meio do desuso" (Digesto, I, III, 32.1).

A razão pode ser encontrada nas posições de Modestino, Gaio e Ulpiano, sendo que este último chega a afirmar que "ao que é permitido o mais não deve ser ilícito o que é menos" (apud Lobo, p. 65)

Iremos fazer um pequeno salto, que ao mesmo tempo guarda algo de ruptura, mas também é uma continuidade, para então fecharmos com uma síntese.

A História do Direito tradicionalmente forneceu elementos para a Sociologia Jurídica, pois como temos visto sociólogos como Durkheim não só eram profundos conhecedores da História do Direito Romano como utilizavam da historiografia para firmar suas teses. Vale lembrar de um dos textos da última avaliação:

 “Em Roma, enquanto que os negócios civis incumbiam ao pretor os casos criminais eram julgados pelo povo, primeiramente pelas assembleias curiais e em seguida a partir da Lei das XII Tábuas, pelas assembleias centuriais; até o fim da República, se bem que ele delegou seus poderes a comissões permanentes, permaneceu em princípio o juiz supremo para estes tipos de processos” (Durkheim, Da divisão do trabalho social,p.39)


Na verdade, a criação das comissões permanentes a que se refere Durkheim ocorre com a Lex Calpurnia, do ano de 149 a. C, que criou o primeiro juri permanente. Para autores da Sociologia como Durkheim o que se encontra por trás  da História do Direito, e daí sua importância para questionar o direito contemporâneo, é exatamente uma conceituação do direito, e portanto, a resposta a pergunta inicial desse cometário (o que é o direito?) a partir do que não é o direito. 

Prezados, em sala de aula, hoje, iremos levar à frente essa reflexão, o tema da minha aula será:  "Conceituando o direito a partir do que não é o direito". Além de nossas fontes historiográficas, da bibliografia indicada, iremos fazer uso dos dois capítulos do livro de Eugen Ehrlich "Fundamentos da Sociologia do Direito", e do livro de Paolo Grossi "La primera leccion de Derecho". Desta última obra, como indicação do fio condutor da aula de hoje, vai ai um trecho:


"No se trata de una precisón banal; muy al contrario, rescata el Derecho de la sombra condicionanete y mortificadora del poder y lo devulve al regazo materno de la sociedade, convirtiéndose de esta manera en expressón de la misma" (Grossi, p. 25)


terça-feira, 8 de maio de 2012

O direito justinianeu

Introdução: A partir de temas bem específico dos seminários (fontes do direito romano: costumes e meus; propriedade quiritária, propriedade pretoriana, etc), temos visto que o direito romano foi muito influenciado em seu desenvolvimento pela configuração histórica de seu povo, não podendo ser diferente. Portanto, qualquer estudo sério sobre as instituições jurídicas romanas, deve necessariamente passar por considerações políticas, sociais e culturais, posto que essas condições imprimem um certo dinamismo as primeiras. Dessa forma, exige-se aqui algumas considerações sobre o papel exercido por uma figura proeminente na história do direito romano: Flavius Petrus Sabbatius Justinianus. Figura que passou para a história do pensamento como Imperador Justiniano. No campo do direito, Justiniano foi um gigante, afinal, ele fez o que mesmo nem mesmo romano nato teria feito até então, a saber, reunir o ciclópico direito romano de forma sistemática, ou seja, codificá-lo. Evidente, que sua participação nisso está vinculada à sua arena, ou seja, ao campo político, ao campo do poder.


I-  

quarta-feira, 21 de março de 2012

Direito em migalhas e História em migalhas


Prezados alunos, algum tempo atrás (não lembro bem, rs), quando fazia o bacharelado em História na minha saudosa Universidade Federal do Amapá, li um livro cujo título estou adaptando nessa postagem, chamado de "História em Migalhas: A dos Annales à Nova História" (o livro desapareceu em situações muito estranhas, posso depois contar em sala de aula, rs). O autor é François Dosse, é uma boa indicação de leitura, para quem quer entender como se escreve a Historia, ou seja, aquilo que chamamos de historiografia.

Mas voltemos ao título dessa postagem, "direito em migalhas". Diferentemente da abordagem da História em migalhas, que busca ressaltar que a ciência histórica deixou de ter a pretensão de uma ciência que se volta para metanarrativas, a razão do título da nossa postagem é para ressaltar duas coisas. A primeira diz respeito a nossa abordagem nas disciplinas História do Direito e Sociologia Jurídica, onde toda referência as normas (todos os atos normativos), institutos, decisões judiciais, jurisprudência e doutrina, tem por única finalidade lançar luzes sobre o passado que buscamos resgatar especialmente na disciplina História do Direito. Isso tem duas implicações, sendo que a primeira diz respeito ao objeto de nossa disciplina, a saber, as transformações históricas do direito (incluindo as leis, institutos, normas, poder judiciário, etc), e portanto, não estão fulcradas no direito moderno e contemporâneo, em outras palavras, não estamos ministrando disciplinas como direito penal, direito processual penal, direito constitucional, ética profissional do advogado, direito civil, direito do trabalho, direito processual civil, filosofia do direito, ciência política, etc. Essa é a primeira implicação que não podemos esquecer, que tenhamos claro o que a disciplina História do Direito não é, assim, ficará mais fácil dizer o que ela é. Ela está voltada as transformações do direito no tempo, e isso, implica, de certa forma, a considerações atuais e contemporâneas, mas essas considerações, só entram nos debates para tornar claro as transformações anteriores.

Portanto, todas as referencias ao direito contemporâneo, especialmente relacionadas às disciplinas dogmáticas, aparecerão como migalhas, até porque a proposta das disciplinas História do Direito e Sociologia Jurídica diz respeito ao tratamento delas de forma integral, mas apenas frações, para podermos compreender o passado, mas com os olhos no presente. Prezados, o direito aqui aparecerá como aparece no direito antigo, sempre em pedaços, sem unidade orgânica, e com a única intenção de lançar luzes na compreensão da evolução dos fatos históricos relacionados aos sistemas jurídicos, tentando captar nesses acontecimentos aquilo que Hannah Arendt chama de "lançar luzes sobre o processo". São acontecimento que, por mais singulares que sejam, revelam e apontam para algo para além deles próprios. A autora, nesse caso, segue a ideia kantiana de "história profética". Veja que o texto de Kant "Resposta à pergunta: Que é o 'Esclarecimento'? de 5 de dezembro de 1783, é um tentativa dessa forma de abordagem, de tal forma interessante que muitos pensadores fizeram referencia a esse texto de 200 anos atrás. Em um texto, o próprio Foucault faz algumas considerações a respeito.

Já disse um autor, que a História não é a ciência do passado, mas do presente, mas o que ele queria dizer com isso? Queria apenas ressaltar que olhamos o passado com os olhos do presente, ou seja, selecionamos o material do passado a partir de valores e considerações atuais, que fazem sentido para nós, e é por isso que as vezes nos sentimos surpresos com as determinações de sistemas legais anteriores, como o Código de Hammurabi, pois não vemos sentindo em se condenar uma religiosa à morte, pelo fogo, porque tomou um caneca de cerveja, como está artigo 110 do referido código. Ora, quando escolhemos coisas, as fazemos por critérios, o historiador também se vale de critérios, que ele alça à condição de critérios objetivos e científicos, mas que não deixam de ser valores, e portanto, com algum grau de subjetividade. Para o jurista Norberto Bobbio há uma diferença entre neutralidade na ciência e imparcialidade na ciência, sendo que a neutralidade é impossível, enquanto que a imparcialidade (entendida como objetividade) pode ser relativamente alcançada por critérios progressivamente objetivos. Veja a lei penal, ela não é neutra, ou seja, quando o legislador opta por um sistema de pena cruéis (suplício até a morte, pena capital, decepação de membros) ele o está fazendo sob fundamentos valorativos, ou seja, concepções sobre o homem, a vida, o mundo, Deus, a morte, etc.

Quando o sistema penal do mundo ocidental começou a banir essas penas cruéis, os valores estavam em transformações, veja, tivemos a partir da Renascença, do Humanismo e da Reforma Protestante mudanças importantes na forma de ver o mundo, sendo que essa nova visão sobre o mundo, é, ao mesmo tempo, resultado e vetor das mudanças, ou seja, tem implicações dialéticas profundas (isso me lembra uma colega da graduação em História, depois que ela incluiu em seu vocabulário o "dialético", tudo era dialético, até um dia que cansado de ouvir ela usar a expressão, um professor pediu para ela definir a dialética, ai, o mundo deixou de ser dialético para se transformar estático, ela paralisou coitada, tentou enrolar,mas já estava claro que ela não sabia). Voltemos ao nosso assunto. Ora, mundo em mudanças, o direito penal continuaria o mesmo? Sem duvida que alguns sistema jurídicos tiveram sobrevida milenar, veja os da Índia (sobrevive apesar da modernização), dos países islâmicos (a tradição hamurabiana está firmemente ficada na cultura dos povos árabes e muçulmanos) , e no caso do ocidente, veja o velho direito romano, que está nas paginas de nossos códigos, especialmente no civil.

A segunda implicação diz respeito à forma de abordagem que estamos adotando ao ministrarmos essas disciplina, ou seja, ao foco, e nesse sentido podemos então afirmar que se já sabemos o que ela não é (tanto a disciplina História do Direito e Sociologia Jurídica), se sabemos o que não estudar, devemos agora nos concentrar no objeto de nosso estudo, ou seja, o fato histórico. Para trazer o fato histórico (aqui seria melhor dizer "dados históricos") ao palco, ao cenário da ciência, fica evidente que não basta convidá-lo, exige-se alguma persuasão, algum esforço, alguma coação até, pois à semelhança das ciências ditas naturais, como a Biologia, vale em parte o conselho de Bacon (humm, deu uma fome agora, rs)em sua obra chamada Novo Organon (Organon é uma obra antiga de Aristóteles, a palavra significa "instrumento"), diz ele: "devemos torturar a natureza para obter as respostas que queremos dela" (as vezes são os alunos que nos torturam...rs...brincadeira). Isso se repete em Descartes quando ele diz: "tornando-se assim como que senhores e donos da natureza". Qual a ideia básica por trás disso? Que se a compreensão do mundo nos fosse dada, nem precisaríamos de ciência, ou seja, se apenas os nossos sentidos já trouxessem a compreensão mundo ( o seu significado), não precisaríamos de um "organon", de um instrumento. Portanto, a postura básica de toda a ciência é uma certa imposição, positividade (não confundir com o extremismo do positivismo científico), de pôr algo, não apenas de receber algo, nesse último caso há uma imposição no sentido contrário (chamado de realismo espontâneo- obs: ter cuidado também com o puro realismo, ou a "realidade mais que real").

Por isso o trabalho de pensar o mundo é o trabalho comparável a de um artesão, ele pega matéria bruta e transforma, ele possui modelos (de uma taça, de um jarro, de um cama, etc), e com esse modelo ele se põe a trabalhar com o material que está à sua mão. Existe também um artesanato intelectual, feito por especialistas, o que me lembra um autor que diz que o trabalho do filósofo é de criar conceitos, que explicam o mundo, que dão coerência ao mundo, no dizer de outro pensador, a filosofia tem a finalidade de expulsar o acaso do mundo, tornando-o coerente. Todo trabalho científico é tributário à filosofia e aos filósofos, apesar da separação entre as duas áreas. Nessa segunda implicação da abordagem que propomos às disciplinas Sociologia Geral/Jurídica e História do Direito, especialmente essa última, quanto ainda a questão do método, ou seja, daquilo que denominei de "chamada ao palco do fato histórico (ou dados históricos)", é importantíssimos nos lembrar das fontes históricas, pois o historiador, na maior parte de seu trabalho, não é con temporâneo do seu objeto de estudo, ou seja, o historiador está quase sempre em momento bem distante do que está estudando (a famosa coruja de Minerva citada por Hegel). Esse aspecto traz enormes responsabilidades e problemas teóricos ao historiador que pretendemos trabalhar em sala de aula a partir dos textos legais antigos. Mas algo que pode ser adiantado é como deve se determinar o historiador com suas fontes, ou seja, qual conduta deve presidir o trabalho do historiador juntos às suas fontes. Já falamos um pouco disse em sala de aula, mas ressalto um elemento a partir do que diz o grande historiador nacional Ciro Flamarion Cardoso citando Marc Bloch:

"Que pensar do mencionado 'fetichismo' do documento, em particular das fontes escritas? Langlois e Seignobos, no manual já mencionado, eram taxativos: 'A História se faz com documentos....Porque nada substitui os documentos: onde não há documentos não há História'. Numa afirmação como esta há algo de verdadeiro e, ao mesmo tempo, algo de falso. Verdadeiro porque, efetivamente, a ausência de fontes impede que um historiador possa realizar plenamente a sua função: como comprovar, sem elas, as suas hipóteses de trabalho? é verdade, inclusive, que as fontes escritas são particularmente importantes. O especialista de História Antiga, por exemplo, sabe que quando aos vestígios arqueológicos não se associam textos, o tipo de conhecimento a que se pode chegar é singularmente limitado. O que há de falso naquela afirmação decorre de que, no fundo, as fontes (escritas) eram consideradas pelos historiadores tradicionais não apenas como condição necessária do labor histórico - o que é legítimo; mas também - com a única condição de as saber analisar em forma crítica - como uma condição suficiente, o que é totalmente inaceitável" (Cardoso, p.46,47)

Logo em seguida, Ciro Flamarion Cardoso afirma, citando Marc Bloch, sendo isso o que mais no interessa no momento aqui:

"Marc Bloch disse, com muita razão, que as fontes são como testemunhas: só falam utilmente se soubermos fazer-lhes as perguntas adequadas".

Prezados, se as perguntas são tão importantes quanto às fontes, se estas só responderão ou ficaram jungidas as perguntas que os historiadores ou nós lhes fizermos, então, podemos concluir que existem muitos elementos subjetivos na construção do fato histórico, da História. Que quero dizer com isso? Duas coisas, conexas, mas distintas. A primeira, é destacar que quem pergunta somos nós, sejamos ou não historiadores, mas o que interessa é salientar que toda pergunta está fundada em interesses (não precisa ter valor negativo o interesse, como diz Hannah Arendt), valores sociais, padrões culturais, até preferências ideológicas, religiosas, etc. Ora, isso significa dizer que uma pergunta nasce de um sujeito cognoscente, portanto, é fruto de uma subjetividade. Uma das consequências disso é que o documento por mais objetivo que pareça não é suficiente para garantir a neutralidade da História.

Outra questão é que só podemos perguntar algo se soubermos razoavelmente daquilo que estamos perguntando, ou seja, que precisamos de informações elementares para fazermos perguntas que nos levarão a questões mais sofisticas. Por exemplo, como vamos perguntar sobre se as penas do Código de Hammurabi foram eficientes, eficazes, sem sabermos sequer que o Código existiu, sem sabermos quais penas eram utilizadas por aquele sistema jurídico, e como elas eram aplicadas? Só teremos a resposta à primeira questão se tivermos informações suficientes sobre essas últimas.

A cientista política e filósofa Hannah Arendt, cita Galileu, que como sabemos é um dos pais da ciência moderna, tem um posicionamento sobre essa questão que merece ser lido:

“Em outras palavras, sendo o experimento ‘uma pergunta formulada à natureza’ (Galileu), as respostas da Ciência permanecerão sempre réplicas a questões formuladas pelos homens; a confusão quanto ao problema da ‘objetividade’ consistia em pressupor que pudesse haver respostas sem questões e resultados independentes de um formulador de questões” (Arendt, p. 79)

Enfim, podemos dizer, pra não prolongarmos mais esse debate, que precisamos tanta inteligência para perguntar quanto para responder. Sem perguntas não há respostas, e sem respostas (mesmo que provisórias) não há ciência, tanto no âmbito das ciências da natureza, quanto nas ciências da cultura. Na próxima postagem, tratarei das diferenças fundamentais entre esses dois ramos da ciência.

Abç

Falbert Sena

terça-feira, 20 de março de 2012

Comentários ao Código de Hammurabi no Louvre

Prezados, há um comentários interessante sobre o Código de Hammurabi no site Museu do Louvre de Paris. Visitem a página, está em francês, pra quem conhece um pouco do francês dá pra ler. Pode jogar também no tradutor do Google, as vezes ajuda, as vezes não. Mas é interessante tentar. Busque compreende a parte que trata do significado do Código de Hammurabi, com o título "La signification du monument". Comentaremos em sala de aula:

Artigo 110 do Código de Hamurabi

Prezados, o artigo 110 do Código de Hamurabi, na tradução de Emanuel Bouzon, determina:
"Art. 110. Se uma sacerdotisa, que mora em um convento, entrou em uma taberna para beber cerveja, queimarão essa mulher".

Veja agora algumas traduções anônimas que peguei na internet:

1)"Se uma irmã de um deus abrir uma taverna ou entrar numa taverna para beber, então esta mulher deverá ser condenada à morte";
2) "Se uma irmã de Deus, que não habita com as crianças (mulher consagrada que não se pode casar) abre uma taberna ou entra em uma taberna para beber, esta mulher deverá ser queimada";

Há um comentário sobre o Código de Hamurabi no site do Museu do Louvre, interessante: o endereço: (http://www.louvre.fr/oeuvre-notices/code-de-hammurabi-roi-de-babylone)


PERGUNTO: Qual o problema de ordem histórica nessa tradução, e como os historiadores chamariam tecnicamente esse problema?

sábado, 17 de março de 2012

Princípio da Intranscendência das Penas

Prezados, ainda para esclarecer. Quando o Código de Hamurabi estabelece em alguns de seus artigos, por exemplo, art. 229: "Se um pedreiro edificou uma casa para um homem, mas não a fortificou, e a casa caiu e matou o seu dono, esse pedreiro será morto". Nesse caso, e outros, a pena do sujeito é individualizada, e isso é de grande importância para o direito, especialmente o direito penal, pois restringe a responsabilidade ao agressor, é uma medida de justiça. Mas, no artigo subsequente, 230, se afirma: "Se causou a morte do filho do dono da casa, matarão o filho desse pedreiro". Ora, que relação causal poderíamos atribuir nessa situação, posto que o agente causador do dano não foi o filho do pedreiro, mas o próprio pedreiro? Evidente que há razões muito particulares aqui, que estão ligadas à cultura dos povos mesopotâmicos, mas, para o povos ocidentais essas medidas são contrárias aos seus padrões culturais.
Uma questão envolvendo as penas diz respeito a uma ilusão substancialista: a ideia jusnaturalista de que a pena deva igualar-se ao delito e consistir portanto num mal da mesma natureza e intensidade.
No ocidente, desenvolve-se uma ideia de individualização das penas, como expressão de justiça, as penas não podem passar do agente que cometeu o dano ou o crime, salvo algumas exceções. A própria Constituição Federal, no artigo 5, inciso XLV, estabelece: nenhuma pena passará do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido".
Essa questão é tão importante para o direito moderno que nossa Constituição também estabelece, no mesmo artigo 5, inciso XLVI, que "a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:".

Ora, estamos diante do "princípio da intranscendência das penas", ou seja, a pena não pode passar da pessoa do agente. A individualização das penas é fundamental no direito moderno, exigindo do magistrado que ele motive as suas decisões, como estabelece o artigo 93, inc. IX a Constituição Federal, "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade". Além do mais, como estabelece o Código de Processo Penal, no artigo 387: "o juiz, ao proferir sentença condenatória: I- mencionará as circunstâncias agravantes ou atenuantes definidas no Código Penal, e cuja existência reconhecer". Mais adiante, ainda estabelece o legislador, no parágrafo único: "o juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta". Portanto, no direito pátrio, a não fundamentação das decisões implica na nulidade do processo, ab initio, ou seja, desde o início, precisando o processo ser refeito pela existência desse vício.

sexta-feira, 16 de março de 2012

QUESTÃO PARA A TURMA

QUESTÃO:

Há no artigo 250 do Código de Hamurabi a seguinte determinação: "Se um boi, andando pela rua, escorneou um homem livre e causou a sua morte, essa causa não terá reivindicação".
Pergunto: o que isso significa?

segunda-feira, 12 de março de 2012

Comentário aos artigos 1-5 do Código de Hamurabi

Como dito em sala de aula, podemos reagrupar os artigos do Código de Hamurabi levando em conta os bens jurídicos considerados relevantes para a civilização mesopotâmica. Por exemplo, que bem está sendo protegido nos artigos 1 ao 5 desse Código? Para além das particularidades de cada artigo, para além dos bens imediatos, existiria um bem que poderíamos chamar de meta-bem a ser protegidos por esses 5 artigos? Ou seja, temos um bem mediato que está por detrás de bens como a vida, a propriedade, e a paz social? Refletindo sobres eles, sugeri minhas idéias ao senhores em sala de aula, queria que comentassem aqui sobre elas:

Atividade extraclasse

Prezados alunos, poderíamos, ao final dos seminários sobre o Código de Hamurabi, e como atividade extraclasse, entrevistar um professor do Curso de Direito do IMES para examinar possíveis pontos que esse texto tem em comum com o direito atual, especialmente sobre as penas e provas. Fazer tipo um jornalzinho, com repórteres e entrevistados, procurando atualizar as temáticas da História do Direito, especialmente. Estou aberto a sugestões!

Implicações presentes do Direito Antigo

Independente da fundamental importância que os estudos do direito dos povos antigos podem proporcionar em termos de legado estritamente jurídico, há outra importância que não pode ser minimizada. Parece que os Estados modernos, principais atores da política internacional, herdeiros de legados civilizacionais e culturais distintos, são muito influenciados hoje pelos valores de suas próprias culturas, e que esse valores, por sua vez, tem forte determinação sobre seus interesses atuais, que são levados em conta no jogo internacional. Portanto, levar em conta a cultura no jogo geopolítico parece ser uma hipótese que permite melhor explicar esse jogo, o que a chamada "teoria realista" sozinha não é capaz de explicar. No dizer de Samuel P. Huntington: "Os valores , a cultura e as instituições influenciam de forma ampla e profunda o modo pelo qual os Estados definem os seus interesses" (O Choque de Civilizações, p. 42)